Os ensinamentos de “The New Normal”
Estou atrasado, eu sei, mas somente hoje consegui finalizar a 1ª temporada de “The New Normal“. A nova série de Ryan Murphy era meu mais novo prazer explícito, sabe aquele programa que você adora tanto assistir que tem até medo de “gastar” o episódio ao assisti-lo de qualquer jeito? Essa é a função que “TNN” exerce na minha vida: catarse.
Para que eu comente uma série aqui, ela precisa, de fato, fazer muito sentido na minha vida. Minha primeira experiência neste caminho aconteceu em 2008, quando chorei palavras para dizer o quanto “The L Word” era especial e desvalorizada. Depois urrei minhas súplicas para “Pretty/Handsome”, projeto do mesmo Ryan Murphy de “The New Normal”, mas que nunca sequer saiu do episódio piloto. Agora, caros, chegou a vez de expressar tudo o que está dentro de mim sobre “TNN” e não serão poucas as linhas e as emoções.
Desde quando descobri a série, me apaixonei, até mesmo porque o enredo mexe com coisas muito íntimas dentro de mim (este tweet pode provar). A história simples de amor entre dois homens, David e Bryan, ambos bem sucedidos em suas carreiras e completamente equilibrados no que diz respeito aos valores e convicções, eles sabem exatamente o momento que vivem e onde querem chegar. Uma relação de cumplicidade, lealdade, honestidade, companheirismo e, acima de tudo, verdadeiro amor. Mas amor genuíno mesmo, sabe? Não aquela coisa plástica, melosa e falsa que muitas séries pregam torrents afora.
A trama tinha tudo para cair no clichê gay que novelas da Globo estão acostumadas a disseminar: o gay afeminado, o marginalizado, o cabeleireiro, o melhor amigo de uma piriguete qualquer da rua, o pobrezinho, o usuário de drogas ou, ainda, o gay perfeito, feito de cera, sem falhas, cuja carreira é sensacional e nada o afeta, nem mesmo a falta de um beijo ou uma demonstração de afeto qualquer. “TNN” foi além disso e buscou retratar a vida de um casal do mesmo sexo de maneira simples, cujo denominador comum era o mesmo para todos os personagens: a procura pela felicidade — ou o resultado do que este conceito pode causar na vida de cada um.
Goldie teve sua filha Shania muito cedo, talvez tenha optado por más escolhas ao longo da sua vida, mas acertou quando foi atrás da própria independência ao deixar de lado o marido traidor e uma avó manipuladora e recheada de preconceitos, típicos dos republicanos tradicionalistas. Goldie desembarcou em uma Los Angeles agitada, diferente da pacata vida que levava em Ohio, onde as pessoas levam em consideração outros aspectos, os quais ela já estava acostumada a não enxergar, como um casal gay que tem o sonho de constituir uma família, mas não tem o útero necessário para levar os planos adiante. E é onde ela, a princípio ingênua e inocente, se coloca à disposição para gerar o bebê que vai mudar as vidas de David e Bryan, um médico obstetra e um produtor de TV, respectivamente.
Ninguém, até então, sabia o que esperava por Goldie e Shania nesta nova fase. Os espectadores, certamente, acreditavam em um caminho paralelo ao que os produtores lideraram o programa, afinal, qualquer série com a temática gay sempre carrega um pouco do perigo da história única. Ryan Murphy foi diferente, ousado e verdadeiro quando criou cada um dos personagens, quando atribuiu a cada um deles uma característica própria, uma essência verdadeira que não foi mascarada em nenhum momento dos vinte e dois episódios produzidos.
Falar de gays com escárnio é fácil, basta seguir o fluxo. O difícil é conseguir dosar os ingredientes e criar a mistura final perfeita. Personagens como David e Bryan existem aos montes, porém, o que os diferencia aqui é a forma como a história vai ser contada e como os coadjuvantes vão interagir e quais serão os discursos escolhidos para tal. A personagem Jane, avó de Goldie, tinha todos os elementos para ser odiada e condenada ao exílio, no entanto, mesmo com suas falas nuas e cruas, ela manteve um papel importante: era o reflexo daqueles que não compreendem o amor de dois homens. Era fácil odiar, repudiar, criticar e lançar ódio ao vento, mas mais fácil ainda foi o de entender a relação afetiva entre dois homens quando se está inserida no meio deles. Quando ela percebeu a grandeza das almas de David e Bry, foi simples perceber que ela, entre qualquer pessoa, não tinha o direito de determinar quem as pessoas devem amar.
A caricata Rocky, negra e altiva, nos trouxe uma dose maior da diversidade que “TNN” já estava destinada a extravasar. De assistente a produtora de um programa de TV, nossa querida e sempre sarcástica Rocky foi a protagonista de muitas das mais importantes lições que a série se destinou a transmitir. O preconceito com gays ainda não é velado — talvez porque ainda não seja considerado crime — e existe a liberdade da chacota. Por outro lado, o preconceito com negros existe, é externado, mas não vem com aquele ranço, até mesmo porque não passaria do primeiro episódio, pois racismo é crime inafiançável. Rocky ouviu algumas (in)diretas vindas de Jane, mas não durou, as coisas se alinharam e, no último episódio, tivemos o discurso delicioso da Nana dizendo que agora ela tem uma amiga negra. Uma amiga negra que adotou uma filha linda, por sinal.
Goldie iniciou sua trajetória ainda um pouco verde. Ao longo dos episódios, na convivência com David e Bryan e com lições sábias de sua filha Shania, a moça foi de garçonete à empresária de um negócio próprio. Não é fácil se tornar mãe de aluguel, especialmente quando a maioria das pessoas mais próximas não te apóia. Os aprendizados foram grandes, as emoções à flor da pele e a certeza de estar fazendo tudo isso por um bem maior, tornam nossa querida Goldie em uma divindade que merece reverência.
A pequena Shania, quanta sabedoria para uma criança de apenas nove anos. Aprendemos muito com a precocidade da jovem, suas mensagens de tolerância, certamente, tornaram seus espectadores (e fãs) pessoas melhores. Com ímpetos de sempre fazer a diferença, chegou a subir ao altar para se casar com seu primeiro namoradinho do colégio, mas acabou tendo seu dia desgraçado pela incompreensão da avó, que foi a única a não perceber a inocência dos atos da neta. Serviu de experiência para David e Bry, que a acolheram como da família, até mesmo quando estavam enlouquecidos — e com medo — com a nova função de pais. Shania mudou seu nome para Sarah, pois queria ser apenas uma “garota qualquer”. Finalmente percebeu o grande valor da sua diferença e acatou seu nome como uma prova de que é possível ser diferente e feliz.
Jane foi a grande transformação, o típico extreme makeover. Uma mulher rancorosa, amarga e carregada de ideologia sobre gays, negros e liberais, conseguiu enxergar além do teto de vidro alheio e sublimou muitos dos próprios preconceitos. Mudou o visual, aceitou um trabalho em uma cidade desconhecida e até ficou adepta ao famoso booty call. Seu romance com Brice (o eterno galã John Stamos) serviu de inspiração para muitos diálogos divertidos e, até mesmo, inseguros sobre autoestima. Jane foi, de longe, a personagem que mais nos atingiu, mexeu na nossa ferida, mas depois conseguiu a redenção e, se uma segunda temporada acontecer, ela será a protagonista de muitas situações divertidas.
E David e Bryan? O casal perfeito. Embora não haja tamanha perfeição em nenhuma relação, ficamos com a sensação de que ali existe sim. Afinal, assistimos seriados para nos deslumbrar com o ficcional e tentar trazer essa magia para dentro das nossas vidas. Um marido dedicado e atencioso como David é, no mínimo, um deleite para os fãs da série. Seus gostos pessoais são extremamente opostos ao do parceiro Bryan: gosta de esportes, academia, foi escoteiro e gostaria que o filho gostasse de beisebol tanto quanto ele. Sofreu com a própria aceitação, mas quando revelou o verdadeiro homem dentro de si, se entregou de corpo, alma e coração para uma relação cheia de carinho e amor.
Bry, por outro lado, carrega em si alguns complexos. Teve sua cota de rejeição pela família que demorou a compreender sua sexualidade, mas nem por isso deixou de buscar a própria felicidade e dedicar sua vida ao amante David. As cenas que os dois vivenciam na cama são as mais lindas. E não falo de sexo, mas do diálogo que todo casal leva para o travesseiro, as discussões, os argumentos e as inseguranças. Embora com personalidades diferentes, David e Bryan sempre priorizaram o respeito e nunca foram dormir com algum tipo de mágoa. Tudo é passível de solução quando se permite a conversa aberta e honesta. Exemplos!
“The New Normal” veio para quebrar paradigmas. Veio para se diferenciar dos gays de “Queer as Folk” e das alegorias de “Glee“. A ideia inicial (e a final também) era de estampar um casal gay como outro qualquer, com empregos, amigos, família, dívidas, problemas e, acima de tudo, sonhos. A família heteronormativa da qual estamos habituados já não convence mais. Está latente lá fora, se tornou efêmera, pois é permitida e a luta não se faz presente. Quando se precisa ultrapassar preconceitos, discriminação e fanatismo religioso simplesmente para ter a chance de viver a própria essência, o troféu conquistado não carrega dissabores, carrega marcas de um caminho difícil. Não é fácil ter de gritar por direitos que lhe são naturais quando algumas pessoas, que não entendem o real amor, decidiram que você não é digno de encontrar o amor (se este estiver no coração de um indivíduo homogêneo), que você não merece a mesma felicidade que aqueles que sentem atração pelo sexo oposto.
Existe uma vida antes de “TNN” e uma vida após “TNN”. E esta pós-vida será com muito mais Davids e Bryans (e Danielas) e muito menos Felicianos e Joelmas.
A música que encerra a primeira temporada resume exatamente o que “The New Normal” representa. John Lennon nos presenteia com “Beautiful Boy” e as palavras suaves nos revela:
“Close your eyes
Have no fear
The monster’s gone
He’s on the run and your daddy’s here”
Parafraseando um trecho da mesma canção, posso afirmar com toda a convicção do mundo que, homofóbicos de plantão, esta mensagem é para vocês:
“A vida é o que acontece com você
Enquanto você está ocupado semeando ódio”
Fica aqui o registro de uma temporada perfeita, de um seriado perfeito, de uma história perfeita. Podemos, sim, ser agraciados com a renovação da série, porém, se não acontecer (te odeio, NBC), tivemos o necessário de “TNN” para que se torne inesquecível e referência para muitos programas que virão por aí.
Celebrem o amor, celebrem a vida e deixe que cada um encontre o próprio caminho. Eis que a ninguém é dado ser juiz de seus semelhantes, porque não há no mundo alma que tenha todo o conhecimento necessário para tal. Que venha o upfront!
Excelente resenha! Quero assistir. Preciso achar Pretty/Handsome do Ryan Murphy legendado. Alguma dica? Obrigada.